Matéria #2 - Ring ni Kakero não é só sobre boxe

        O mestre Kurumada é conhecido por ser um autor representante do Nekketsu, um estilo narrativo direto, dinâmico e que apela fortemente para a emoção do leitor. A todo instante ele busca nos impactar e nos gerar as mais diversas emoções, desde o drama, até a felicidade, alívio, tristeza e por vezes, principalmente com seus finais, o sentimento agridoce que só ele é capaz de nos proporcionar.

        Por conta disso e pela temática de suas histórias, Kurumada não recebe crédito por uma veia que possui muito forte nas entrelinhas de suas obras, o seu lado político. E não, aqui não entrarei em definições baratas de direita e esquerda, nem mesmo tentarei colocar o mestre em algum espectro político, mas é inegável que ele nos mostrou seus graus de crítica, leitura e expectativa no futuro em alguns de seus trabalhos. E o que pegarei para apontar algumas dessas coisas é seu primeiro sucesso, a denominada “bíblia do shonen”, Ring ni Kakero.


        Kurumada nasceu no dia 6 de dezembro de 1953, ou seja, ele nasceu em um contexto muito específico do Japão, o pós-segunda guerra. Com o fim do conflito, é bom lembrar que o Japão passou por um período de ocupação estadunidense em seu território de 1945 até 1952, onde já no período e, principalmente, após ele, enfrentou uma invasão de capital estrangeiro e uma abertura para o ocidente nunca vista em sua história. Tudo isso caiu como uma bomba para os setores mais tradicionais da sociedade japonesa, que se incomodavam com a presença americana no país, da mesma forma que a juventude dos anos 60 via um cenário caótico para que crescessem. Mesmo com o desenvolvimento econômico acelerado e as tentativas de mostrar ao mundo que estava recuperado, como a realização das Olímpiadas de Tóquio em 1964, a verdade é que o país passava por uma convulsão econômica e social muito forte. 

        Foi nesse contexto que Masami Kurumada nasceu e cresceu. Devo lembrar que o mestre veio de uma família que não era das mais abastadas, vivendo nos bairros baixos/subúrbio de Tóquio quando mais novo, tendo trabalhado desde muito jovem. É inegável que ver como seu país estava no cenário caótico do pós-guerra deve ter influenciado na sua formação política e social, e é nesse contexto que precisamos falar sobre Ring ni Kakero. 


        O início da obra é bem diferente do que acompanhamos até o seu fim, onde o mestre nos entrega algo mais pé no chão e mostrando uma dura realidade para os irmãos, até então, protagonistas. Ryuji e Kiku são duas crianças órfãs, habitantes de uma área aparentemente pobre, quase uma zona rural do Japão, que vivem em um contexto social extremamente violento. O pai deles havia falecido e sua mãe não conseguia sustentar ambos os sozinhos, o que a obrigou a se casar com um homem extremamente violento e cruel. O padrasto de Ryuji e Kiku, pode ser lido de diversas formas. É claramente um homem mais velho, amargurado e que cedeu aos vícios. Uma leitura possível é de que esse homem é o retrato do que virou o Japão e o japonês pós-segunda guerra. Se fizermos umas contas e passar a obra para o mundo real, é muito provável que o padrasto dos jovens fosse um veterano de guerra. Mais para frente na história, o vemos querendo usar Ryuji para ganhar dinheiro, mostrando também um lado ganancioso de sua parte, o que o torna uma figura ainda mais execrável.


        A solução para escapar daquele inferno era justamente deixar o local que tanto odiavam em busca de uma nova oportunidade, ou melhor, a promessa de que isso aconteceria, onde a dupla de irmãos segue para Tóquio. É aqui que retornamos para a história japonesa nos anos 60, onde com a crescente da economia, a urbanização japonesa se acelerou para níveis nunca vistos. Claro, sinto que serei dedutível a informação, mas essa urbanização não foi planejada de nenhuma forma, levando a crescente desigualdade social e ao amontoamento de pessoas. As condições de vida não apenas em Tóquio, mas em outras grandes cidades como Osaka e Nagoya, eram cada vez piores para uma parcela empobrecida da população que não era atingida pelo “milagre econômico” japonês que se iniciara nos anos 60. 

        E quando fala sobre a cidade, o Kurumada não parece poupar palavras. Já no trem que levava Kiku e Ryuji para o local, vemos como o comportamento das pessoas daquela cidade era diferente do que vemos ambos os irmãos tendo. Mais frios, esnobes, destratando aqueles jovens que vieram do interior, vemos uma bela dose de preconceito contra os dois, mas é quando chegamos na cidade que o Kurumada parece vir de forma ainda mais pesada em sua crítica, dedicando quatro páginas para apresentar a cidade. Acompanhem comigo. 




        Logo de cara já temos o primeiro contraste. Se no primeiro painel dessa página nós temos uma amostra da urbanização e organização da capital, o segundo nos mostra o primeiro contraste. A primeira coisa que chama a atenção é o local, a saída de uma estação de trem. É curioso pois, Kiku e Ryuji estão chegando na capital para mudar suas vidas, mas a imagem que se sobrepõem no primeiro plano é a de dois homens sujos, bêbados, pobres e em sofrimento. Foi até ali que conseguiram chegar? Foi isso o que aquela cidade cheia de promessas foi capaz de oferecer a ambos? Enquanto os dois agonizam, temos uma menina na direita, que pouco parece ligar para a presença de ambos e um casal um pouco mais ao fundo, bem vestidos, tranquilos, e que mais uma vez nos mostra as diferenças que aquela capital pode trazer. 



        E então, vemos ainda mais a exploração dessa Tóquio decadente. Estou falando muito sobre os anos 60 no Japão e eles são super importantes para o entendimento de RNK, então vou falar mais um pouco. Se lembram que falei antes a respeito da juventude japonesa? Pois então, uma das muitas reclamações que haviam era a perda de soberania nacional em todos os sentidos possíveis. Isso foi razão de protesto de muitos estudantes que temiam que o Japão fosse arrastado para mais guerras, mas que também tivesse uma influência americana em sua sociedade tão grande que não tivesse mais volta. Por isso que é interessante quando o Kurumada nos fala em um dos balões: 

"Tóquio também é a cidade que abraça o esquecimento da linguagem japonesa." 

        Ou seja, aqui, vemos um Kurumada que parece se juntar ao coro da perda de identidade japonesa no pós-segunda guerra. E mais uma vez, nos quadros restantes, a mesma crítica ao urbanismo sem planejamento e a pobreza que a população das classes mais baixas eram submetidas pelo sistema da época. Milagre econômico para quem, não é mesmo? 



        Agora, temos o reforço de Kurumada com essas duas páginas. Tóquio era o símbolo da destruição japonesa com relação a seus valores e costumes. Um local corrompido, entregue, mas que principalmente vive de aparências. As promessas feitas nunca foram cumpridas, o milagre japonês era uma realidade distante, as oportunidades foram negadas e tudo o que mandava naquele lugar era o dinheiro. O dinheiro era o amor, o poder, a amizade, a confiança e a base de todas as relações, mas naquela sociedade do espetáculo em que as pessoas se corrompiam cada vez mais, o tormento parecia avançar cada vez mais sobre elas. Lembro que eu, o autor desse texto, não estou fazendo juízo de valor a respeito de nenhuma dessas declarações, mas apenas estou interpretando o que o Kurumada pode ter pretendido passar. 

        Finalizando essa parte para irmos para outro ponto, o que fecha essa visão negativa de Tóquio e as promessas feitas é uma das cenas mais interessantes. 


        Kiku e Ryuji, recém chegados em Tóquio, ainda possuem uma ingenuidade grande com relação a cidade grande. Contam para todos seus planos e sonhos e confiam em qualquer um, o que os leva a serem quase sequestrados por um grupo de pessoas. É nesse contexto que resolvem fugir, acabam se separando e chegamos até a cena em que Kiku é aparentemente roubada, e está sem o seu irmão, mas quando grita por socorro e ajuda, ninguém a responde. Pelo contrário, notem como o Kurumada dá uma ênfase nos rostos daquelas pessoas. Expressões vazias, olhos em branco, como se delas tivessem sido roubadas as almas, e que apenas seguiam em frente ignorando tudo ao seu redor. Provavelmente a caminho do trabalho que os consumia, ou mesmo trilhavam o torturante caminho de casa, onde sabiam que no dia seguinte tudo aquilo iria recomeçar. É aqui que a dupla de irmãos aprende e percebe que eles são muito pequenos, e o sentimento de inferioridade perante aquela realidade de prédios enormes e amontoamento de pessoas logo bate a porta dos dois irmãos que sonhavam em mudar suas vidas. 


        Nesse contexto de falência e degradação e de uma sociedade que parece ter esquecido de suas próprias raízes, que vemos o nascimento do Japão Jr. Para não tornar esse texto maior do que já está, é claro que tive que cortar algumas coisas, mas já nesse ponto Ring ni Kakero era uma obra diferente se comparada ao seu início. Se antes a crítica e a reflexão de Kurumada a sociedade japonesa era direta, agora as coisas eram mais veladas. Kurumada teve que deixar para trás o clima mais pé no chão para abraçar o exagero, as técnicas gritadas e o melodrama, tudo que o fez ser quem é, e que fez com que revolucionasse a indústria dos quadrinhos nos anos 70, e foi a partir daí também que tivemos a maior popularização de grupos de protagonistas. 

        É claro, Kurumada também fez isso para fugir a comparações com Ashita no Joe, já que seria difícil competir com um mangá daquela proporção de fama, mas também de crítica. Ao tornar Ring ni Kakero um trabalho ainda mais autoral, perdeu-se um pouco do clima quase pessimista que existia a respeito daquela Tóquio e do Japão, onde a figura de Ryuuji e seus amigos emerge como um caminho, uma salvação. Por quase quatro décadas o Japão cresceu comercialmente, passou por um processo de industrialização, encolhimento populacional, mudanças em suas tradições e várias outras coisas ao longo do tempo. Nossos protagonistas são jovens que carregam um potencial único e brilhante, cada um se destacando em diferentes pontos de sua personalidade, mas que possui em Ryuuji e Kenzaki suas duas estrelas principais. O primeiro, um jovem que veio do nada e foi vencendo contra as possibilidades que a vida impunha a ele, e o outro um jovem rico e abastado, que mesmo tendo sua grande dose de esforço, era considerado um gênio desde o início e alguém que teve a vida muito facilitada.

        Nos outros, temos também diferentes aspectos, como Shinatora e sua vida e educação mais voltadas ao tradicionalismo japonês. Ishimatsu, um jovem de sangue quente, inconsequente e brigão, que veio de um local bem similar ao do protagonista principal, e também Takeshi Kawai, um jovem prodigioso na música, mais delicado em sua aparência, mas que tinha um amor pelo boxe. Todos esses jovens dos mais diversos espectros da sociedade japonesa representavam o futuro e a esperança de que o Japão poderia ser ele próprio e não um produto do capital estrangeiro e da importação de costumes que muitos jovens a partir dos anos 60 e 70 passaram a adotar, onde iam de encontro, especialmente, a ideia do tradicionalismo japonês. 

        E a equipe júnior de boxe tinha uma meta, a de ganhar competições de boxe contra outras nações, mas não para passar a ideia de superioridade japonesa perante o mundo, mas sim da força daquele povo. É bem comum ao longo do mangá vermos amostras de preconceito, com personagens chamando Kenzaki e os outros de "amarelos", "macacos", "sujos", dentre várias outras formas de racismo e xenofobia. Um desses casos, inclusive, é justamente de um dos membros da equipe estadunidense. É curioso parar para pensar que o Kurumada quase sempre arruma uma forma de alfinetar, criticar e ironizar os americanos em suas obras. Aliás, já pararam pra pensar que entre os 88 cavaleiros, os homens nobres que defendem o amor e a justiça, temos todas as nacionalidades do mundo menos a norte americana? Curioso, no mínimo, mas esse é um assunto para um outro texto. 

        A geração dourada que recuperou o orgulho e autoestima do povo japonês é muito significativa dentro do mangá de Ring ni Kakero, e faz completo sentido quando analisamos os contextos sociais, econômicos e culturais, ainda mais em um Japão pós-segunda guerra que se via mais como vítima do que como agressor, mesmo tendo sido devastado pelas duas bombas atômicas. O contexto do pensamento japonês é complexo, pois envolve tradição, nacionalismo, crítica, choque de gerações e ideias, e um país que por mais que tivesse indicadores econômicos em crescimento, parecia navegar a deriva em todas as outras questões. Por isso a ideia do japão júnior parece ter agradado tanto aos leitores da época, afinal, os mangás se popularizaram com força à partir dos anos 70, e Kurumada vinha de uma escola de autores que muito refletia sobre a sociedade e o mundo que viviam. Nesse Japão convulsionado e dividido, Ryuuji, Kenzaki, Shinatora, Kawai e Ishimatsu vieram para unir e agregar, onde a história termina com aquela equipe sendo imortalizada, sua memória sendo levada pelas gerações e uma lendária luta entre os dois maiores símbolos do grupo. 


        No entanto, nem tudo são flores. A partir da década de 90 o Japão experimenta um forte baque em suas políticas econômicas e uma preocupação cada vez maior com as taxas de natalidade que colocavam em risco o crescimento do país. No início dos anos 2000, Kurumada então retorna com sua obra, fazendo a continuação, Ring ni Kakero 2, e a memória do que aquele Japão poderia ter se tornado parece ter ruído e os homens que antes eram símbolos transformaram-se em fantasmas do passado, mas esse é um assunto para a parte dois desse texto. 

        Muito obrigado por ler até aqui e espero que tenham gostado de ler e conhecer um pouco mais sobre esse esquecido lado do mestre!