Kiku e Ryuji, recém chegados em Tóquio, ainda possuem uma ingenuidade grande com relação a cidade grande. Contam para todos seus planos e sonhos e confiam em qualquer um, o que os leva a serem quase sequestrados por um grupo de pessoas. É nesse contexto que resolvem fugir, acabam se separando e chegamos até a cena em que Kiku é aparentemente roubada, e está sem o seu irmão, mas quando grita por socorro e ajuda, ninguém a responde. Pelo contrário, notem como o Kurumada dá uma ênfase nos rostos daquelas pessoas. Expressões vazias, olhos em branco, como se delas tivessem sido roubadas as almas, e que apenas seguiam em frente ignorando tudo ao seu redor. Provavelmente a caminho do trabalho que os consumia, ou mesmo trilhavam o torturante caminho de casa, onde sabiam que no dia seguinte tudo aquilo iria recomeçar. É aqui que a dupla de irmãos aprende e percebe que eles são muito pequenos, e o sentimento de inferioridade perante aquela realidade de prédios enormes e amontoamento de pessoas logo bate a porta dos dois irmãos que sonhavam em mudar suas vidas.
Nesse contexto de falência e degradação e de uma sociedade que parece ter esquecido de suas próprias raízes, que vemos o nascimento do Japão Jr. Para não tornar esse texto maior do que já está, é claro que tive que cortar algumas coisas, mas já nesse ponto Ring ni Kakero era uma obra diferente se comparada ao seu início. Se antes a crítica e a reflexão de Kurumada a sociedade japonesa era direta, agora as coisas eram mais veladas. Kurumada teve que deixar para trás o clima mais pé no chão para abraçar o exagero, as técnicas gritadas e o melodrama, tudo que o fez ser quem é, e que fez com que revolucionasse a indústria dos quadrinhos nos anos 70, e foi a partir daí também que tivemos a maior popularização de grupos de protagonistas.
É claro, Kurumada também fez isso para fugir a comparações com Ashita no Joe, já que seria difícil competir com um mangá daquela proporção de fama, mas também de crítica. Ao tornar Ring ni Kakero um trabalho ainda mais autoral, perdeu-se um pouco do clima quase pessimista que existia a respeito daquela Tóquio e do Japão, onde a figura de Ryuuji e seus amigos emerge como um caminho, uma salvação. Por quase quatro décadas o Japão cresceu comercialmente, passou por um processo de industrialização, encolhimento populacional, mudanças em suas tradições e várias outras coisas ao longo do tempo. Nossos protagonistas são jovens que carregam um potencial único e brilhante, cada um se destacando em diferentes pontos de sua personalidade, mas que possui em Ryuuji e Kenzaki suas duas estrelas principais. O primeiro, um jovem que veio do nada e foi vencendo contra as possibilidades que a vida impunha a ele, e o outro um jovem rico e abastado, que mesmo tendo sua grande dose de esforço, era considerado um gênio desde o início e alguém que teve a vida muito facilitada.
Nos outros, temos também diferentes aspectos, como Shinatora e sua vida e educação mais voltadas ao tradicionalismo japonês. Ishimatsu, um jovem de sangue quente, inconsequente e brigão, que veio de um local bem similar ao do protagonista principal, e também Takeshi Kawai, um jovem prodigioso na música, mais delicado em sua aparência, mas que tinha um amor pelo boxe. Todos esses jovens dos mais diversos espectros da sociedade japonesa representavam o futuro e a esperança de que o Japão poderia ser ele próprio e não um produto do capital estrangeiro e da importação de costumes que muitos jovens a partir dos anos 60 e 70 passaram a adotar, onde iam de encontro, especialmente, a ideia do tradicionalismo japonês.
E a equipe júnior de boxe tinha uma meta, a de ganhar competições de boxe contra outras nações, mas não para passar a ideia de superioridade japonesa perante o mundo, mas sim da força daquele povo. É bem comum ao longo do mangá vermos amostras de preconceito, com personagens chamando Kenzaki e os outros de "amarelos", "macacos", "sujos", dentre várias outras formas de racismo e xenofobia. Um desses casos, inclusive, é justamente de um dos membros da equipe estadunidense. É curioso parar para pensar que o Kurumada quase sempre arruma uma forma de alfinetar, criticar e ironizar os americanos em suas obras. Aliás, já pararam pra pensar que entre os 88 cavaleiros, os homens nobres que defendem o amor e a justiça, temos todas as nacionalidades do mundo menos a norte americana? Curioso, no mínimo, mas esse é um assunto para um outro texto.
A geração dourada que recuperou o orgulho e autoestima do povo japonês é muito significativa dentro do mangá de Ring ni Kakero, e faz completo sentido quando analisamos os contextos sociais, econômicos e culturais, ainda mais em um Japão pós-segunda guerra que se via mais como vítima do que como agressor, mesmo tendo sido devastado pelas duas bombas atômicas. O contexto do pensamento japonês é complexo, pois envolve tradição, nacionalismo, crítica, choque de gerações e ideias, e um país que por mais que tivesse indicadores econômicos em crescimento, parecia navegar a deriva em todas as outras questões. Por isso a ideia do japão júnior parece ter agradado tanto aos leitores da época, afinal, os mangás se popularizaram com força à partir dos anos 70, e Kurumada vinha de uma escola de autores que muito refletia sobre a sociedade e o mundo que viviam. Nesse Japão convulsionado e dividido, Ryuuji, Kenzaki, Shinatora, Kawai e Ishimatsu vieram para unir e agregar, onde a história termina com aquela equipe sendo imortalizada, sua memória sendo levada pelas gerações e uma lendária luta entre os dois maiores símbolos do grupo.
No entanto, nem tudo são flores. A partir da década de 90 o Japão experimenta um forte baque em suas políticas econômicas e uma preocupação cada vez maior com as taxas de natalidade que colocavam em risco o crescimento do país. No início dos anos 2000, Kurumada então retorna com sua obra, fazendo a continuação, Ring ni Kakero 2, e a memória do que aquele Japão poderia ter se tornado parece ter ruído e os homens que antes eram símbolos transformaram-se em fantasmas do passado, mas esse é um assunto para a parte dois desse texto.
Muito obrigado por ler até aqui e espero que tenham gostado de ler e conhecer um pouco mais sobre esse esquecido lado do mestre!